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S012e Santos, Ensaio sobre a cegueira, resenha


vb. criado em 22/05/2013, 22h08m.

index do verbete 1. Três níveis de exame: a) adaptação da literatura ao cinema; b) aspectos jurídicos ou de relações de poder; c) aspectos mitológico-simbólicos.

Sobre adaptação cinematográfica de obras literárias

2. Traslada-se para o cinema a fábula, o enredo. A narrativa tem de ser outra, porque o meio é outro. As qualidades que fazem um bom livro não são as mesmas que fazem um bom filme, porque não é um bom enredo que faz um bom livro, nem um bom filme. E tudo que se pode trasladar de uma arte para outra é o enredo .

3. A escrita pode ser mais ambígua que a imagem: o escritor, com palavras, sugere imagens, que o leitor tem de construir mentalmente. No cinema, a imagem é ofertada pronta. O poder de criar imagens ambíguas no cinema é muito mais restrito.

4. Por outro lado o escritor pode ser mais explícito sobre os conteúdos mentais da personagem do que o diretor de cinema, que depende, para isso, da qualidade do ator. A indicação dos pensamentos da personagem literária pode ser extensa e minuciosa, no cinema isso depende de sugestões imagéticas (cuja leitura depende que o espectador seja atento e conheça previamente o “vocabulário” da arte), ou de diálogos, que se tornam cansativos se são muito longos ou explicativos.

5. O leitor dita o ritmo da leitura, pode reler. No cinema, o diretor determina o ritmo da fruição. Há truques para manipular o tempo psicológico , nas duas artes, mas é certo que o poder do leitor é maior que o do espectador, nesse ponto.

6. Filmar um livro famoso é quase como refilmar, porque o espectador que já leu o livro vai necessariamente compará-lo com o filme.

7. O cinema tem séria limitação de tempo. Não cabem em duas horas de projeção os conteúdos de 200 páginas de livro. A média, no cinema, é de um minuto por página de roteiro (e as páginas de roteiro têm muito menos informação que as do livro). Normalmente o diretor tem de escolher uma das camadas do livro, para filmar. No caso deste filme, o diretor encorpou a camada das relações interpessoais, especialmente dos casais, diminuindo o aspecto político da fábula.

8. Os livros são compostos geralmente de cena (personagem + ação + sequência), cenário (descrição) e digressão. No cinema o cenário é instantâneo, um segundo de imagem apresenta o que no livro consome páginas. Os filmes são feitos, geralmente, quase só de cenas (ação). A vantagem do livro é que acomoda muito melhor a digressão, que, no filme, tem que ser disfarçada em diálogos (que podem acabar soando didáticos, pernósticos, inverossímeis) ou narração em off (que é demodê e soa condescendente). A digressão pode ser convertida em imagens, mas a mensagem pode ficar sutil demais, ou ambígua, para o espectador médio.

9. O livro é uma criação solitária, por isso depende só do talento do escritor. No filme, obra coletiva, o diretor depende do talento de muitos outros para fazer um trabalho de qualidade.

Sobre aspectos jurídicos e relações de poder

10. A parábola mostra a fragilidade dos alicerces sobre que se sustenta o estado de direito. Primeiro, ao mostrar que os direitos civis não prevalecem quando uma epidemia assim aparece. Segundo ao mostrar que afastadas do contato com as estruturas do Estado as pessoas se reorganizam com base na lei do mais forte e numa organização tribal.

11. Esse modelo de rearrumação das relações de poder aparece também em outras situações de isolamento fora da esfera de controle do Estado, como nas cadeias brasileiras.

12. Ao que parece, segundo essa parábola, a construção ou reconstrução de uma sociedade principia pelo abandono da ideia de salvar todos, e pela adoção da premissa de que só é possível salvar uns poucos, pondo-os em luta contra outros grupos. O sentido que surge diante da catástrofe, mesmo nos personagens “bons”, não é o de comunidade, mas o de tribo. Sozinho não é possível sobreviver, daí porque a formação de tribos, e a guerra contra outras tribos, é indispensável.

13. O filme mostra ainda que o aparato de poder do Estado não resiste a uma alteração substancial das condições de vida, porque se baseia num certo quadro de distribuição de forças, numa rede de convenções, cujo fundamento é a capacidade do Estado de fornecer um mínimo de bem-estar aos súditos. Privada desse mínimo suprimento de bem-estar, colocada fora da zona de conforto, a população perde a fé nas convenções, e a ordem jurídica estatal perde força. A relação de poder entre Estado e súdito é baseada num acordo de troca, e numa fragilíssima rede de convenções. O arcabouço político, e o arcabouço jurídico que serve para legitimá-lo, são muito menos sólidos do que pensamos, porque se baseiam na civilização humana, que é só uma casca muito fina e frágil que recobre o animal selvagem enquanto ele tem suas necessidades básicas atendidas. Deixado à mercê das suas fomes primitivas, o homem se desciviliza fácil e rapidamente, libertando o selvagem que é na essência, e deixando aflorar os instinto mais forte, porque mais primitivo: o de sobreviver a qualquer preço.

14. As relações de poder se alteram de pessoa a pessoa, de pessoa a grupo e de grupo a grupo conforme os fundamentos de poder se modificam. Os saberes que davam poder ao médico deixam de ter valor na sociedade de cegos. A cegueira, que fragilizava o cego de nascença, converte-se em fonte de poder na nova sociedade. A beleza que era fonte do poder da moça de óculos deixa de vigorar. O velho caolho, que não atrairia mulher nenhuma no mundo das aparências, converte-se no preferido da mulher mais bonita. O garçom, que servia, agora é o rei, que exige ser servido. O mundo ordenado do início era o planeta dos carros, do congestionamento, e depois é o mundo das ruas vazias, onde carros não servem para nada.

15. O sentido da parábola parece ser afirmar que somos cegos que não querem ver. Só quando colocados fora do mundo das aparências podemos ser quem realmente somos, e conhecermos os outros como realmente são. A cegueira literal vem para revelar a cegueira que já existia previamente, e que ninguém via. A mulher do médico é a única que sai da caverna e contempla o mundo como ele realmente é. Como será para ela continuar a vida depois de ter visto o que viu, depois que o Apocalipse se revela um alarme falso?

16. O Estado aparece no filme sempre pela TV (indicativo da distância entre o Estado e seus súditos? “Tele” visão é visão à distância). O vídeo que dita as regras do confinamento é a representação da presença do Estado, da Ordem, dentro da prisão. E a imagem e o som do vídeo vão se degradando conforme o caos se instala lá fora e a organização estatal se esgarça. Os cegos da Ala 3, quando iniciam a rebelião, quebram a TV e anunciam que ninguém mais ouviria aquela mensagem.

17. É recorrente no filme mostrar os personagens refletidos em janelas, espelhos ou superfícies polidas, em vez de focalizá-los diretamente. Esse uso reiterado dos reflexos em vez das imagens propriamente ditas tem relação com a mensagem do filme, de que não vemos as coisas como elas realmente são, mas reflexos distorcidos delas?

Sobre os símbolos na fábula

18. O diretor optou por descrever o cenário de forma caótica, que não permite compreender a geografia, o desenho do prédio, e criou, assim, um labirinto. A única coisa que fica clara é que, para ir à camarata 3, é preciso descer uma escada. Há, então, um labirinto (os labirintos eram primitivamente armadilhas para trancar demônios), e precisa haver um minotauro, que exige sacrifícios e deve ser morto pelo herói. E há uma katabasis, uma descida ao inferno, que é imagem recorrente no ciclo do herói.

19. Na cena em que deliberam sobre prostituírem ou não as mulheres, o médico abandona a liderança: aparece no fundo, meio na sombra. Desse ponto em diante a mulher é que cresce e passa a liderar. Logo, ela assume a condição de heroína (ultrapassa o metron).

20. Embora no início o médico e sua mulher reproduzam, por hábito, as relações de poder que valiam no mundo da normalidade (ela, embora seja vidente, respeita a liderança dele, cego), estava claro, desde o início, que a heroína da fábula era ela. É uma constante, apurada por Propp no estudo de dezenas de fábulas europeias milenares: o herói é sempre uma pessoa assinalada, que porta ou recebe um sinal que o distingue dos demais (pode ser uma cicatriz em forma de raio na testa, ou uma pomba que vem do céu anunciando “este é meu filho”). Neste caso, todos estavam cegos, e só ela via, e esse é o sinal do eleito.

21. A mulher do médico troca de papel durante a jornada heroica. Na jornada do herói a mulher aparece como uma tentação de meio de caminho que convida ao abandono da jornada, à acomodação no ninho quente e macio. Neste caso, a heroína só se converte em tal quando se separa do marido. Tem que se converter em amazona, que é uma mulher sem homem, mulher que não precisa de homem. As amazonas são unidas e pacíficas entre elas: as mulheres-macho tradicionalmente formam sociedades pacíficas, e só guerreiam contra homens. E ela vira heroína-amazona abandonando o marido, e trocando o estilo feminino de heroísmo, o heroísmo de sacrifício (mulher que se prostitui para manter a casa) pelo heroísmo de combate, que mata para obter a comida. Se masculiniza. Antes ela era Ariadne: guiava o herói pelo labirinto, estendia fios pelo labirinto para guiar os cegos. Como Ariadne, foi abandonada pelo amante, que preferiu outra mulher. Daí em diante ela é Teseu.

22. A mulher do médico evoca também a saga de Judite, que vai dar-se ao chefe inimigo para depois mata-lo, salvando a cidade que a covardia dos homens não conseguira libertar. Holofernes, marechal de Nabucodonosor, cercou Bétula, e cortou o acesso à água. Os homens da cidade se reuniram e pediram ao chefe que se rendesse: “É melhor que bendigamos a Deus no cativeiro, vivos, do que morrer vergonhosamente diante de todos os homens, vendo morrer sob os nossos olhos nossas mulheres e nossos filhos”. Diz a Bíblia que ao conhecer Judite “Holofernes ficou cativo de seus olhos”. Não é pouca coincidência, para um filme sobre olhos e olhares.

23. Mas em vez de alfanje ela usa uma tesoura. E tesoura é arma feminina, porque evoca a parca, que com uma tesoura corta o fio da vida do mortal. As parcas dão a vida (tecem o fio, como a mulher do médico, que prepara o fio que guia os cegos) e dão a morte (cortam-no). Assim como as nornes germânicas, as moiras romanas, as rozenicy dos eslavos, são trios de fêmeas, como as bruxas que amaldiçoaram Macbeth. E, no fim do filme, o que vemos são três mulheres em volta do fogo, como em Macbeth.

24. A mulher do médico também lembra Moisés, ao guiar seu povo por uma paisagem semideserta até a terra prometida (a casa, onde tudo continua limpo e ordenado). Notar que durante toda a parte anterior do filme (especialmente no hospício) as imagens eram distorcidas, cheias de sombras ou áreas superexpostas, ou enfumaçadas, ou obstruídas por obstáculos, ou cortadas de forma inusual escondendo parte do tema. Mas dentro da casa a câmera focaliza imagens limpas, nítidas, sem obstruções: a casa é o lugar da ordem, a Jerusalém reencontrada.

25. Temos uma Ifigênia, atraída para o sacrifício pensando que ia para um casamento (união com homem). Seu sacrifício dispara a guerra, porque anima a heroína a matar. E é chamada de peixe morto. O peixe simboliza Cristo, cordeiro de sacrifício, e também a eucaristia (juntamente com o pão). É uma figura crística, de alguém que dá a vida para salvar outros.

26. Comida por toda parte, como parte de um sistema de imagens (imagens ou temas visuais que se repetem ao longo do filme para mostrar mudanças, constantes ou evoluções). Neste filme aparece o tema das três laranjas, o tema do casal conversando diante do fogo, o tema do banho coletivo, o tema da moça que põe os óculos para estar apresentável quando chegam os outros cegos e depois o velho que põe a venda preta para ficar apresentável diante da moça.

Lista de símbolos detectados:

27. Cego: ignora a realidade, ou ignora as aparências enganadoras e conhece a realidade secreta. Cegueira dos velhos simboliza sabedoria. Os adivinhos são geralmente cegos. Tirésias, cegou porque viu Atena (deusa da sabedoria e da estratégia) nua. Édipo cegou-se por expiação. Sansão ficou cego após pecar (foi cegado depois de rapado, após mentir 3 vezes para Dalila sobre a fonte do seu poder). Os deuses são donos da luz.

28. Branco: assim como o negro pode situar-se nos dois extremos da gama cromática. Absoluto, sem variações. Candidus, a cor do candidato, aquele que vai mudar de condição (vinculada aa iniciação, aos ritos de passagem, especialmente, segundo Eliade, a primeira fase, a passagem pela morte ou a luta contra a morte). Para Kandinsky, equivale ao silêncio absoluto. É a cor da revelação, da graça, do entendimento, da teofania (manifestação de deus), essencialmente a cor da sabedoria.

29. Mar: lugar dos nascimentos, das transformações e dos renascimentos. Bastismo por imersão.

30. Leite: o ramaiana faz nascer a amrita, poção de vida, da batedura do mar de leite. Fertilidade, conhecimento num sentido esotérico; o leite é a bebida e o lugar da imortalidade. Para curar soldados feridos por flechas envenenadas dos bretões, o druida manda recolher o leite de 140 vacas brancas num buraco no meio do campo de luta e ali imergir os feridos. Leroux. A pedra filosofal é chamada leite da virgem. Maomé teria declarado que sonhar com leite é sonhar com a ciência ou o conhecimento. Leite é lunar, feminino.

31. Nome: nomear uma coisa ou um ser equivale a adquirir poder sobre ele. Adão foi encarregado de dar nome aos animais: era conceder-lhe o poder sobre eles. Para os egípcios o nome é uma dimensão do indivíduo, o nome tem poder criador e coercitivo; o nome será coisa viva.

32. Sete: uma semana, seis dias ativos e um dia neutro. O hexágono (seis lados e um centro, seis planetas e o sol no meio, seis direções do espaço e mais o centro) representado totalidade do espaço e totalidade do tempo). É o quatro, a terra, mais o três, o céu, represneta o universo em movimento.

33. chuva: influências celestes recebidas pela terra, agente fecundados, sêmem cosmológico

34. ciclope / caolho: lado titanesco, negro, da criação, maneja o raio, poderes maus, infernais. O ímpar, a antiordem.

35. Cão: função mítica de psicopompo, guia do homem na noite da morte.

36. Ver o que é uma mulher guiando. Ariadne é mais famosa e cantada que Teseu. Mas é lembrada porque amou e foi abandonada. Fio de ouro, três pães envenenados e uma maçã.

37. “O enforcado maraca bem o final de um ciclo, o homem se invertendo para enfiar a cabeça na terra [...]. Símbolo da purificação pela inversão da ordem terrestre”, da restituição à terra, que é condição de regeneração ctoniana. É o começo da segunda etapa.

Comentários e notas

38. mostra o horror da anarquia em seu pior estado – o selvagem. Quando despojados das facilidades modernas, voltamos a ser bichos, em busca das nossas necessidades básicas, como comida, bebida e sexo. E como mesmo após passar por degradações, privações e sermos humilhados, ainda somos capazes de encontrar uma maneira de termos alegria. Para provar que, apesar de tudo, ainda somos seres humanos.

39. 'Ensaio sobre a Cegueira' é do escritor português José Saramago, vencedor do prêmio Nobel. O roteiro ficou a cargo de Don Mckellar, de 'O Violino Vermelho'.

40. Aprendi muito sobre som nas horas em que fiquei cego e decidi que vamos ser muito experimentais em nossa mixagem. Percebi também como a percepção do espaço é fragmentada e precária quando se usa apenas as mãos para entendê-lo, então decidi simplesmente abolir a geografia neste filme. Quem tentar entender qual corredor leva a qual parte do asilo vai perder seu tempo. Rodamos cada cena como nos dava na telha, sem nos preocupar se o ator deveria sair pela direita ou pela esquerda, na esperança de dar ao espectador um pouco da desorientação que a experiência da oficina me trouxe. Reflexos o tempo todo, imagens abstratas, mal enquadradas, desfocadas ou superexpostas completarão a receita da desconstrução do espaço (ou da visão?) neste filme. Tomara que funcione, agora é tarde para recuar

41. No Canadá, o diretor não pode falar com figurantes, se falar o figurante é promovido a ator e tem seu salário quintuplicado, a produção me impedia de fazer isso,

42. “A Parábola dos Cegos”, de Brueguel, e resolvi recriar a mesma imagem em Montevideo. Pensando nas palavras de Cristo segundo o evangelho de São Mateus: “Quando um cego guia outro cego, ambos cairão na mesma vala”.

43. o Mark contou que é surdo de um dos ouvidos, o que dificulta localizar um som no espaço,

44. Em cenas muito difíceis alguns atores estão usando lentes de contato que bloqueiam 100% a visão, deixando-os livres para se concentrar na intenção da cena sem se preocupar em parecer cego.

45. ajudei o Mark a sair do set conduzindo-o pelo ombro, avisando onde havia obstáculos. Levei-o até um canto do corredor e ficamos ali em pé batendo papo. Quando me chamaram no set ele resolveu voltar para o trailer, ofereci chamar o Quico para ajudá-lo a voltar mas ele disse que iria tentar vencer os 150 metros de corredores labirínticos sozinho. Que ator esforçado, pensei. Saiu andando e tateando a parede, mas lá na frente subiu lépido as escadas. Só então percebi que ele estava sem as lentes de contato. Falou o tempo todo me fazendo de bobo, como se estivesse cego. Mesmo a 40 centímetros de seus olhos, não percebi a diferença. Quando fui comentar a tapeação, ele deu risada. Anda fazendo isso o tempo todo com todos e todo mundo cai. Aquela foi a minha vez e não deve ter sido a primeira.

46. é um texto que gera muitas perguntas, mas nenhuma resposta, levanta questões sobre a evolução do homem, nos faz refletir criticamente mas não aponta direções. Cada um terá que descobrir o caminho por si só. É uma história pós-moderna. Creio que por ser assim tão aberto, este livro permite que cada um o leia projetando suas próprias questões e todas as leituras parecem fazer sentido. Não é à toa que tanta gente diz ser este o seu livro favorito. Quem me dera fazer um filme com 5% desta qualidade.

47. Me interessei por esta história porque ela expõe a fragilidade desta civilização que consideramos tão sólida. Em nossa sociedade, os limites do que achamos que é civilizado são rompidos cotidianamente, mas parece que não nos damos conta, a barbárie está instalada e não vemos ou não queremos ver. Para mim, era sobre isso o livro.

48. “Eu não acho que ficamos cegos”, diz um personagem. “Acho que somos cegos. Cegos que podem ver, mas não vêem”.

49. Em uma entrevista em Porto Alegre, Saramago confirmou esta idéia : “...no caso do Ensaio Sobre a Cegueira ainda é essa a minha esperança: A de que a mulher seja capaz de tomar um novo lugar no mundo e inventar um modo novo de ser”

50. o desmoronamento do qual o livro fala não é necessariamente da sociedade ou da civilização, mas de cada indivíduo. Ao perder a visão, os personagens fazem o percurso da desumanização, passam a se mover pelo instinto de sobrevivência e suas vidas se resumem a comer, transar, defecar. É só o restabelecimento das relações amorosas, do afeto, do reconhecimento do outro que lhes dá a estrutura para reconstruir suas vidas e se humanizarem novamente. Acho que estamos dando uma ênfase maior a estas relações entre os personagens do que o livro dá.

51. Alexandre Herchcovitch – que nos deu um monte roupas e ainda fez uma participação bebendo água da sarjeta.

52. Humor é sempre um golpe baixo. Difícil resistir.

53. Roteiristas sabem que o conflito é a melhor gasolina para qualquer história.

54. Quem conta a história? Esta é em geral uma das primeiras decisões que um escritor tem que tomar. No cinema é a mesma coisa, a escolha de quem será o narrador transforma completamente um filme.

55. Essas três maneiras de contar a história dão a cara ao filme e isso já estava indicado no roteiro. Ou seja, qualquer decisão do roteirista pode transformar o filme radicalmente não só em seu conteúdo, mas em seu formato.

56. essa é a primeira lição que se aprende em cursos de roteiro, se uma cena não transforma a história ela está sobrando e deve ser cortada.

57. às vezes não é preciso fazer a trama andar, o simples deslocamento do ponto de vista, a troca de narrador, gera um enorme movimento mesmo que a ação pare

58. Neste filme, que é sobre olhar, mas não ver, esconder um pouco o que se passa ajuda a colocar o espectador no mundo dos personagens cegos, quero crer.

59. quem conhece um pouco de pintura vai identificar referências a Hieronymus Bosch, Rembrandt, Malevitch, alguns dadaístas, cubistas, Francis Bacon, gravuras japonesas, e principalmente algumas telas do Lucien Freud que nem referências são, são cópias mesmo.

60. 45 horas de material rodado

61. Há um milhão de maneiras de melhorar uma atuação na montagem. Nos momentos mais vergonhosos pode-se cortar para a cara do outro ator evitando o vexame, uma fala mal falada pode ser regravada e usada com a imagem do ator de costas e daí para frente. É muito fácil tapear o espectador (sinto muito) e confesso que tenho um certo prazer quando consigo fazer isso sem deixar marcas da trapaça. Mas neste caso, conforme o previsto, não precisaremos usar estes truques sujos, nosso elenco é muito consistente. O trabalho maior desta montagem será achar o tom certo para cada personagem. Coloca-se um olhar a mais, uma pausa a menos, põe-se aqui, corrige-se ali, é como temperar um ensopado. Neste processo tentamos deixar o médico mais arrogante no início, sua mulher mais bobinha, a Garota de Óculos Escuros mais fria, e assim por diante e então, durante o filme, todos vão se transformando, criando o chamado “arco do personagem”. No final das contas, 98% dos filmes são sobre isso, sobre transformação de personagens

62. a idéia de fazer a trilha com o Uakti foi justamente trabalhar com timbres desconhecidos, com o intuito de colocar o espectador num universo sonoro tão novo quanto o mundo da cegueira.

63. o que mais me preocupou foi a dificuldade de alguns amigos em se relacionar com os personagens sem nome e história. Na literatura isso funcionou perfeitamente, mas no cinema percebi que não seria tão fácil.

64. De tanto rever estas cenas minha paciência está se acabando. Imagine o que é ficar assistindo ao mesmo filme diariamente por cinco meses. Cenas ou falas que eu gostava anteriormente agora me parecem ruins ou desnecessárias para a trama, então eu vou cortando fora

65. O livro do Paulo Lins era puro acontecimento. Se contecimentos e cenas de ação geralmente já estão descritos nos livros, a adaptação é relativamente simples.

66. O filme fala como se reorganiza uma sociedade a partir do princípio. Quanto o individual deve ceder ao coletivo. Tenho certeza de que este é um tema que interessa a Saramago.

67. A narração tinha muitos trechos textuais do livro, mas ao assistir na tela, achei que ela estava conduzindo muito o espectador. O livro é tão aberto a interpretações, e a narração tirava isso. Na última hora, antes do lançamento mundial, resolvi tirar boa parte da narração.

68. Honestamente, acho que desde o começo do século passado, com aqueles russos como o Eisenstein, quase tudo já estava inventado no cinema. Só ficamos recontando as mesmas histórias com um pouco mais de tecnologia.

69. Diálogos têm de parecer orgânicos na maneira como são escritos e na maneira como são falados. Detesto diálogos em que se sente a presença de um roteirista "inteligente" por trás ou da presença do ator. Diálogos expositivos são o que há de pior num roteiro.

70. Há muitos detalhes que fazem um bom roteiro. Idéias ou imagens que se espelham em várias cenas dão corpo a um roteiro. Gosto quando um roteiro me leva para um lado para onde não esperava ser levado

Narratologia em geral

71. A tragédia só se realiza quando o metron é ultrapassado. Desmedida, peripécia, reconhecimento, acontecimento patético, catarse.

72. Na nossa cultura a iniciação se dá por transferência de emoções, através da literatura (feijó)

73. No mito, o que prevalece é o destino, do qual nenhum homem escapa; na tragédia, o que se destaca é a luta do herói contra o destino. O herói trágico é derrotado diante da força do destino, mas o que humaniza, é exatamente a sua luta contra isso. O herói trágico não se conforma com o seu destino. Esta é a sua essência. (feijó)

74. Édipo. Na literatura, o destino do herói é a sua iniciação: a descoberta de si mesmo. (Feijó). O herói continua visitando os infernos, mas principalmente passeia sobre sua própria alma. Cego e sem poder, o herói trágico havia descoberto sua identidade.

75. Dante. A história da literatura é a história da passagem do herói divino para o herói humano: a personagem. Não é casual que o primeiro herói realmente literário tenha sido o próprio autor. A iniciação da vida plena obriga o herói a passar pelo inferno

76. Dom Quixote. É o herói do romance moderno: tem fé, num mundo sem fé e luta contra o que não existe mais. Um herói deslocado. Comparar com o herói tradicional, Hércules, com o herói moderno na figura de Quixote: o primeiro só bate, o segundo só apanha.

77. Ulisses de Joyce: O heroísmo literário do século XX veio a ser isto: o herói se descobre no seu cotidiano anti-heróico.

78. Bertolt Brecht (1898-1956). Não existem heróis positivos, mas seres humanos que se transformam e adquirem confiança ou se degradam e perdem a bondade, mas nunca como heróis definitivos.

79. Vladimir Propp, “Morfologia dos Contos de Fadas”. Distanciamento: deixa o lar. Proibição: uma interdição é feita ao herói (‘não vá lá’, ‘vá a este lugar’). Herói assinalado: ganha uma cicatriz, ou marca, ou ferimento. O herói chega incógnito. Reconhecimento do herói (pela marca/cicatriz que recebeu). Termina nas núpcias do herói: o herói se casa ou ascende ao trono.

80. Ideias do Foster

a. - Fausto

b. - viagem

c. - comunhão

d. - vampirismo

e. - bíblia / contos de fadas / mitos gregos

f. - chuva / neve / clima

g. - paisagem é paisagem psíquica (geografia é metáfora da psique)

h. - a violência é outra coisa, e o sexo também

i. - a ação pode ser um símbolo

j. - parábolas não tratam de anomalias

k. - voo e voar

l. - batismo

m. estações do ano

n. - uma só história: o homem no mundo, contra a natureza, ele mesmo e o outro

o. - imperfeições físicas e doenças são símbolos

p. - atenção para a ironia

Frases

81. Os bons livros não imitam a vida, têm vida própria. (José Castello?)

82. A literatura é um potente instrumento de interpretação do mundo, não porque forneça respostas, e sim porque é uma máquina de perguntas. (José Castello)

83. No objeto, por fim, amamos o que colocamos de nós mesmos, o pacto, a harmonia que estabelecemos entre nós e ele, a alma que ele adquire somente para nós e que é constituída das nossas recordações. Pirandello.

84. E aí veio a revolução. E vi os fracos se tornarem fortes e fazerem por sua vez o que sempre os fortes fizeram aos fracos. (Grant Morrison, Os invisíveis)

85. a nave dos loucos: ambiguidade de prisioneiros acorrentados a um barco completamente livre. Lygia Fagundes Telles

86. Uns são filhos da puta, e outros não; e isso é tudo. Kerouac.

87. Leia essa maldita história. Ele não desaponta. Não era o que eu esperava. O que é justamente o que eu queria (Mark Millar ou Warren Ellis?).

ENCYCLOPAEDIA V. 51-0 (11/04/2016, 10h24m.), com 2567 verbetes e 2173 imagens.
INI | ROL | IGC | DSÍ | FDL | NAR | RAO | IRE | GLO | MIT | MET | PHI | PSI | ART | HIS | ???